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Aracy Amaral | A arte urbana de Henrique Oliveira | 2011
03/06/2011

Meu primeiro contato com a poética ambiental de Henrique Oliveira deu-se no Parque Ibirapuera, por ocasião do evento das Paralelas da Bienal de São Paulo, em 2006. A audácia da escala, as forças tumultuadas de suas formas no espaço convencional me causaram de imediato um impacto, distinguindo-se seu trabalho, energicamente, dos demais participantes. Foi uma conquista à primeira vista pela ampla movimentação das formas e sua rusticidade agressiva.

Pude ver seus trabalhos, tanto instalação como pinturas, posteriormente, em individuais, em São Paulo, e desde então tenho acompanhado sua rápida trajetória. Nesse período ainda observava com desconfiança um certo paralelismo que parecia perceber entre suas pinturas e as instalações. Como estabelecer um vínculo entre essas duas formas de expressão – uma de pintura e a outra vigorosamente tridimensional ?

Apesar de minha dificuldade era bem visível a “conversação” entre as volteantes pinceladas amplas e as quase dançantes espatuladas de acrílico sobre a superfície bidimensional, assim como as placas coloridas de lascas de compensados vergados e sobrepostos em suas instalações.

Se as pinturas nos cativam como magnificadas guardas marmorizadas de livros preciosos, nos atraem visualmente como projeções de massas, magmas candentes suspensos por um átimo de segundo, a agitação captada por Oliveira se comparando ao turbilhão de seus tridimensionais.

Hoje vejo com alguma clareza dois momentos na trajetória deste artista - que detém ainda uma aparência quase adolescente (!) - e que parece, dia e noite absorvido por seu trabalho: um momento, que ele denomina de “Tapumes”, por se utilizar do material utilizado nas cercas de compensados que delimitam as construções em execução nas ruas de cidades no Brasil. São esses “tapumes”, objetos de tapar, como a pintura moderna, como ele mesmo lembra, sem ilusão de profundidade, tendo implícito o principio da planaridade, e a seguir pintados de uma forma meio aquosa, sem maior preocupação formal e sim contendo uma força muito grande em seus movimentos arrancados, “rasgados”. É a fase de afirmação de Oliveira, quando as ondas violentamente encapeladas de suas superfícies sugerem o movimento mais fascinante para o surfista audacioso. Orgânicos, verdadeiros tsunami sempre, pela quase vertigem de suas ambientações. É a fase elaborada com restos, dejetos catados, buscados, encontrados e montados em suas instalações.

Henrique Oliveira é, definitivamente, um artista da geração plena do consumo urbano, suburbano, periférico, conforme nos assinalam seus materiais e a forma de utilizá-los - e desprezá-los após sua apresentação em eventos ou exposições - . Suas primeiras e fortes instalações se dão sobre o muro, ou a parede; ou posteriormente, na Bienal do MERCOSUL (2009), brutalmente construída, como colada, sobre a fachada de uma residência de inícios do século XX em Porto Alegre, no sul do Brasil.

Em sua trajetória, num segundo momento, emerge, como natural desenvolvimento na seqüencia de exposições individuais, o objeto escultórico, paralelamente à instalação e à pintura, como uma derivação das tridimensionais de parede.

Quando ocorrem inserções de elementos geométricos acoplados ao corpo da peça (uma forma racional em contraposição à brutalidade visceral do contexto - como em “Caçambocitose” - ) ele a chamará de “Boxoplasmose”, como a obra que apresenta nesta exposição. Aliás, é peculiar a nomenclatura utilizada por Henrique Oliveira, pois o artista recorre a títulos que remetem às ciências médicas, como o “Xilonoma Chamusquius”, para se referir, com humor, de maneira pseudo-cientifica, a um tumor de madeira calcinada. Essa atração pelo “cientifico” o levará igualmente a procurar formas para os seus objetos tridimensionais, folheando o Atlas of Gross Pathology . Assim, não se considera órfão de influencias. Ele próprio reconhece com simplicidade sua admiração por Willem De Kooning e Frank Auerbach, este ultimo sobretudo em seus “Xilempastos”, denominação que dá aos painéis de madeira, onde os volumes são construídos “tomando como modelo texturas de pinturas, em particular o empasto do óleo” inspiradas em Auerbach (depoimento do Artista à Autora, 24 jun.2011) . E acrescenta, nesse mesmo depoimento: “A idéia por trás destas minhas obras é a de “empastos” feitos de madeira, uma combinação de dois elementos opostos numa mesma imagem: a pasta mole, fluida, e a madeira dura, ressecada”.

É preciso, ao mesmo tempo, ressaltar a relevância do desenho no universo de Henrique Oliveira. O registro gráfico, neste artista, antecipa, em particular, suas obras tridimensionais. É seu lado poético por excelência, um traço direcionado, que formata com sensibilidade as composições em projeto, comprovando que o exercício mental prevê os movimentos e a forma das peças a serem desenvolvidas.

Assim, nos últimos anos, o processo de trabalho de Oliveira passou por uma alteração. Antes era o dejeto. Hoje, o material “construtivo” ressalta em suas criações. O que teria mudado? Na verdade, o dejeto cedeu lugar à “epiderme urbana”. As instalações mais gritantes e rasgadas cedem, aos poucos, lugar a construções de formas mais modeladas. Isso sem alterar o fato de que, como diz ele, seu trabalho ser sempre “sobre criar tensão no espaço”, e ser um meio-caminho “entre pintura, arquitetura e escultura” (entrevista a Kimberly Davenport, Rice Gallery, Houston, 2009). Ou seja: ele se relaciona com cada uma dessas artes, em sua necessidade de “encontrar os limites do espaço”.

Mas no processo atual, já ocorre uma sistemática: depois dos desenhos preparatórios, procede à colocação da armação e ao inicio da composição com o compensado flexível com parafusos, antes do revestimento da peça com papelão embebido em cola. A aplicação visível de lascas de compensado ou de fitas de compensado fino flexível, portanto, material industrializado novo e não mais apenas dejetos construtivos, vão sendo grampeados com cola sobre as estruturas, esses grampos retirados após a secagem da goma. Oliveira enfatiza o hibridismo de materiais que caracteriza esta fase atual: “As lâminas de madeira que recobrem estas peças ainda são recolhidas do lixo. O que mudou do início das instalações da série Tapumes para hoje, foi o uso adicional de elementos construtivos que me permitiram maior controle e plasticidade para o desenvolvimento de formas mais complexas. Os tubos de PVC, o papelão, a cola, os parafusos e principalmente o compensado flexível, estes sim, são materiais industriais novos. São usados para construir as peças, pois que as lâminas de compensado usado só entram no final, revestindo tudo como uma “epiderme urbana”(depoim.cit.).

Outro dado relevante a nos chamar a atenção é sua capacidade de enfrentar um espaço, a liberdade de pensar “macro”, de conceber sua transfiguração através de projetos como o do Smithsonian Institution, (Washington, 2010), ou sua inserção/fusão com a arquitetura (Bienal de Monterrey, 2009). Ou ainda ao demonstrar a fusão de seus delírios cromáticos pintura/tridimensionais (Rice Gallery, Houston, 2009).

E a cor ? Como chega a pintura visível sobre essas formas ondulantes, viscerais ou barrocas ? Ora, a paleta do pintor está no chão, como diz ele, no piso, ordenadamente disposta em tiras, a cor sendo pinçada pelo artista na medida do progresso da montagem da peça. Daí porque, concluímos, ser provavelmente uma de suas maiores dificuldades a determinação do encerramento do trabalho.

Mencionamos considerar Oliveira um artista eminentemente urbano. Pelo caráter construtivo de sua obra, ostentando ao mesmo tempo uma organicidade agressiva que nos atraiu desde o primeiro instante, por se distinguir da fatigada academia concreta/neoconcreta/conceitual em que ainda hoje está tão mergulhada a arte brasileira desde os anos 50-60.

Ao mesmo tempo, pela escala e manualidade de execução de seus trabalhos, amplos e espaciais, parece distante de seus contemporâneos brasileiros. Embora egresso de uma escola de artes visuais, onde é clara a preponderância de professores de tendencias antes formalistas que expressivas, há um teor arquitetônico-construtivo em suas concepções que nos remetem às audácias plásticas de um Frank Gehry, ao mesmo tempo que a recorrência e manipulação de materiais descartáveis parecem nos assinalar uma certa afinidade com a “ arte povera”, especificamente urbana como a de Jacques Villeglé ou de Mimmo Rotella dos anos 60.

Falamos de um artista muito jovem, com trajetória dinâmica, procedente de um país aberto e ansioso pelo novo. Henrique Oliveira analisa o espaço e o povoa, desconstruindo-o de maneira passional. E com técnicas e materiais heterogêneos reconstrói esse espaço com uma carga de energia incomum, formas em constante mutação. Não é uma bela aposta ?

AMARAL, Aracy: “A Arte Urbana de Henrique Oliveira”.
Texto publicado no catálogo da exposição Henrique Oliveira, Galerie Georges-Philippe & Nathalie Vallois, Paris, 2011.

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