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Rafael Campos Rocha | Sobre a Obra de Henrique Oliveira | 2006
06/06/2006

O meu primeiro contato com a obra de Henrique Oliveira foi, na verdade, o contato com a seleção de parte de sua obra feita por críticos e curadores, contendo, portanto, todo tipo de restrições institucionais que esse tipo de seleção comporta. A escolha crítica de sua obra recaiu sobre seus tapumes coloridos, desgastados pelo tempo e montados de acordo com as condições oferecidas de exibição. Poderiam sugerir distopias urbanas não fossem seu aspecto demasiado pictórico e “artístico” e a sua adesão confortável ao lugar de exibição. Mesmo assim, o apuro da realização impressionava. Na sua última obra, entretanto, houve uma melhora considerável. A citação da pintura transformou-se no prometido cenário sugestivo, como os panos de fundo das ficções científicas urbanas e distópicas típicas do cinema dos anos 80 - como Fuga de Nova York e Blade Runner - com toda a emergência da mensagem dessas obras. Uma estruturação física mais sofisticada, com volumes movimentados, e arabescos semi-orgânicos também contribui para outra sugestão: a de forças desconhecidas prestes a romper a pele putrefeita de uma civilização decadente. Ao inventário urbano, poderíamos acrescentar o notório medo do desconhecido e do limite tecnológico do homem, presente em filmes como Alien, em que a vida orgânica incontrolável conspurca todo o ascetismo determinista. Dá mais o que pensar, apesar de não se adequar (ou ser totalmente englobado) por slogans da arte contemporânea como “espacialização”, “contemporaneidade” e, principalmente o “estética da gambiarra”, de longe o mais sinistro e de conseqüências ideológicas mais graves.

Com a pintura a coisa aconteceu diferente. Por ser mais livre, passou desapercebida pela crítica e curadoria especializada por mais tempo, quase sempre mais generosa com trabalhos “conceitualmente mais bem resolvidos”. Felizmente, com o apoio do artista Rubens Espírito Santo e da crítica Juliana Monachesi, além da iniciativa da galeria Baró Cruz, sua pintura em tela se torna pública.

Nessa, podemos notar ainda com mais vigor a reversibilidade pop das formas, que tanto poderiam estar lá, como não. Esse tipo de procedimento descomprometido, se afasta Oliveira do tipo de ética universalizante que sustentou muito do melhor modernismo, não o aproxima de forma alguma do ecletismo neoliberal da arte dos anos 80 para cá.

Essa extrema peculiaridade do trabalho de Oliveira acontece graças ao mesmo esmero técnico que já havia arrancado os seus tapumes de uma formalização por demais rígida ou mesmo tímida. No fim das contas uma ética de procedimento, que se não se aproxima do projeto universal por uma sociabilidade mais justa do alto modernismo, também não é o vale-tudo da ironia pós-moderna. Ironia, aliás, que tem sido a maior muleta para a incompetência artística do dias de hoje. Como se qualquer coisa, da frivolidade mais imbecil a adesão mais descarada à nova paranóia fascista frente ao fim do status quo - se justificasse somente por ser intencional. Um comportamento que esconde dois preconceitos: o primeiro, de que existiu em algum momento da história da arte alguma espécie de artista inconsciente, modelo que teria ficado ultrapassado depois de Duchamp. (preconceito que esconde sub-repticiamente um segundo: o do evolucionismo artístico). O segundo, mais grave e totalmente irmanado ao primeiro, inclusive no próprio Duchamp, é o de que esse distanciamento coloca o irônico por cima e além das vicissitudes de seu tempo, inclusive ideológicas. Essa sim, uma forma de conceber a arte como o produto de uma “bela alma a sofrer”, no dizer de Hegel, isolada das condições materiais que, na verdade, a constituem. O aspecto algo escandaloso e de algum mau-gosto nas obras de Oliveira não é, portanto, uma ironia nem com o modernismo nem com as escolhas estéticas dos outros. É justamente uma pintura descomprometida com determinações a priori, incluindo aí as de gosto, ideológicas e mesmo éticas (sejam lá o que essas exigências éticas em arte possam vir a ser).

Nas pinturas, entretanto, concentrar-se na qualidade das partes, ou de sua fatura, poderia custar o interesse da obra, como acontece com os virtuoses. No caso presente, é um risco que não se corre, graças ao abandono do pintor por uma ambição em se conseguir uma unidade, não só da obra, mas qualquer uma daquelas unidades utópicas pretendidas pela vertente iniciada pelo construtivismo russo e que culmina na figura de Joseph Beuys. Afinal, se essa ambição pela unidade entre arte e vida não impediu naquela época a realização de grandes obras de arte era porque essa mesma ambição era parte constituinte da classe social ao qual pertencia o artista e de seu próprio lugar na sociedade. “Resgatá-la” em outro contexto histórico é transformar essa própria história em um paramento. Uma máscara capaz de ser vestida quando se convém esconder as reais relações sociais em andamento.

Portanto, esse desinteresse do nosso artista com relação à função social do objeto artístico, acaba impelindo (um pouco a revelia, é verdade) o espectador a estabelecer uma relação mais livre com a obra, sem que esse se sinta, ao mesmo tempo, esmagado e alienado de sua narrativa por um acúmulo de estímulos visuais.

Sem a preocupação de uma visão unitária, não só entre as partes da pintura, mas entre a atividade artística e a vida como um todo, as pinturas alcançam um frescor insuspeito, além de uma real força decorativa, que acaba revelando a verdade dos impulsos do artista na concepção da obra. Essa verdade é, suspeitamos, algo aproximado da velha paixão da pequena burguesia pelo dispêndio honesto do próprio tempo, em que o hobby e o lazer são as duas balizas mais visíveis, hábito cada vez mais arraigado desde Paris de meados do século XIX. E é justamente esse tempo usado de forma livre que agora, em tempos de conhecimento do outro, da diferença, e principalmente das reivindicações desses segmentos, ganha nuanças antes insuspeitas na discussão de seu próprio direito de existir. A afirmação desse direito, e da despretensão de seu usufruto, ao nosso ver, é responsável por muito da qualidade da melhor pintura contemporânea, herdeira dessas manifestações sociais que se escancararam na Europa capitalista no século XIX. Podemos notá-lo tanto em seu aspecto muitas vezes de pesquisa íntima como Tuymans, como no seu decorativismo despretensioso em Henrique Oliveira.

Entretanto, nem todos os elementos da pintura de Oliveira fazem um elogio de sua própria classe e do seu uso do tempo da vida. A ausência de uma preocupação com o gosto ou, melhor dizendo, com o bom-gosto o afasta definitivamente da produção para inteligentsia pequeno-burguesa do tipo protagonizada por Woddy Allen, quase sempre alicerçados em uma má consciência de classe que muitas vezes beira ao pânico. O anti-moralismo dessas manifestações (na verdade de um moralismo de classe acirrado) é responsável por muito da tenuidade da produção cultural contemporânea, que acaba tendo de se alicerçar em todo o tipo de slogan anti-utópico (leia-se anti-socialista) para garantir o compromisso com seu próprio público que ele hipocritamente finge pressionar.

De qualquer forma, a obra de Oliveira, mesmo mediante os seus não desprezíveis limites (e talvez por causa deles mesmos), trata o espectador como alguém que considera o que está vendo um artefato feito por um indivíduo dentro dos limites de seu tempo, sua classe e sua sociedade. O que por si só – em uma época que oscila entre a curadoria temática e a propaganda do extermínio da diferença – é bastante salutar.

ROCHA, Rafael Campos: “Sobre a obra de Henrique Oliveira”
Texto não publicado, São Paulo, 2006.

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